NESTA EDIÇÃO: confissões de um procrastinador, O Escondido, motivacional do Tio Bill, Faktura fechada.
Por longos minutos fiquei vendo o cursor piscar no espaço em branco do documento aberto onde eu havia me proposto escrever esse texto. Coloquei uma playlist de música instrumental para buscar focar um pouco [músicas com letra costumam servir menos a esse propósito; podcast nem pensar].
Pra me distrair menos, fui aos poucos fechando as quase 10 abas abertas no navegador, e onde tinha feito uma coisa de outra de trabalho, pesquisa. E onde também estava preso no loop de atualizar o feed de algumas redes sociais, em busca de alguma nova notificação de mensagem direta, reply ou comentário que justificasse minha atenção naquilo.
Só mais uma enrolada, assim como tenho feito nos últimos anos quando se diz respeito a “minha escrita” / “minha produção autoral” ou qualquer outro termo que eu possa usar pra dar uma ar de importância pra uma coisa escrita aqui e ali. Que me trouxe alguns frutos, alguma realização pessoal e financeira [essa em grau muito menor], e uma certa esperança de que cada trabalho pudesse levar ao próximo.
E leva, com certeza. Ao mesmo tempo em que cada trabalho novo de escrita parece ser sempre o primeiro - estamos [re]começando a cada nova empreitada. E se não temos vontade de fazer, se falta tesão pra nos expressarmos colocando uma letra depois da outra, nada sai. Essa falta de vontade pra colocar minhas ideias em movimento foi aumentando nos últimos anos conforme eu fui me dando conta de que não havia nem de longe chegado onde eu queria, e que em alguns casos o esforço havia sido à toa - minhas escolhas no geral não foram as melhores, pra dizer o mínimo.
Pelo menos esse… bloqueio[?] não apareceu quando precisei escrever textos corporativos por encomenda. Post pras redes de uma marca? Tá pronto. Newsletters de vendas? Claro. Traduções do que precisar? Com certeza. Roteiro de vídeo pra influencers? Sem problema. Como um Cyrano digital, coloquei palavras sedutoras na boca do Rodrigo Hilbert [e pude incluir na minha lista de piadas autodepreciativas sem graça que pelo menos alguma coisa eu conseguia fazer melhor que ele].
Não vou mentir, em alguns desses casos atrasei entregas aqui e ali porque a cabeça não ajudava - e quem é que no Brasil de Biroliro teve a cabeça boa nesses últimos anos, né? Mas pra minha sorte essas coisas eu entregava bem. Só que a minhas histórias, as que eu escrevia por prazer - principalmente os Quadrinhos, essas sofreram bastante.
Em Março de 2019 eu havia perdido o melhor trabalho que já tive até o momento, para uma startup estrangeira: remoto, com horários flexíveis [salvo por algumas reuniões em outro fuso], pagando em Dólar, que eu havia conseguido sem indicação alguma, que me proporcionou visitar a Europa por três anos seguidos - a trabalho e com pouco tempo pra curtir, mas ainda assim uma experiência de vida que nenhum outro lugar havia me proporcionado…
Ainda que as coisas estivessem uma merda aqui por conta da crise política e econômica causada pelo golpe que culminou na eleição do inominável que ocupa o poder até o fim do ano, minha situação até então era relativamente confortável. Mas ao ser demitido daquele trabalho, um baque mais forte veio.
Em EM ÁGUAS PROFUNDAS, seu livro sobre Meditação, David Lynch fala sobre a “máscara de borracha do palhaço”, uma metáfora quase junguiana / reichiana sobre como ficamos presos dentro das nossas próprias inseguranças e traumas, que formam essa couraça sufocante de falsa felicidade para a sociedade. Isso pode se parecer demais com o que você vê rolando o feed do Instagram todo o dia.
Segundo ele, o mito [ou “fantasma”] do artista sofrido não serve pra nada e é contraproducente. Autores de natureza boêmia - *coff*Bukowsky*cof* - ajudaram a perpetuar o tal mito ao relacionar a energia da produção criativa ao inconformismo iconoclasta que só é acessível a quem vivencia dificuldades financeiras. Há inclusive um juízo de valor perpetuado por anos a fio segundo o qual a única arte “autêntica” é aquela gerada por quem está na merda.
Claro que um momento de grande dificuldade pode levar - a depender das circunstâncias, afinidade e sensibilidade do indivíduo - a uma iluminação criativa, uma catarse pessoal da raiva pelo sistema que talvez só quem está pra ser despejado e não aguenta mais comer miojo pode ter. Uma espécie de Travessia do Abismo em que podemos transmutar nosso lixo pessoal em ouro se sobrevivermos à jornada.
Mas e quem não sobrevive ao encontro com seus demônios pessoais? Com o reflexo no espelho do nosso semblante embaçado pela nossa visão turva de fracassos elencados? Eu posso tentar produzir algo nessas condições, mas ou vai sair uma série de textos autodepreciativos, ou não vai sair nada. Como não tem saído.
Um pouco antes da Pandemia eu finalmente me dei conta de que não conseguia curtir nada direito. Inventei de ir pro Google, e achei a Distimia - um tipo “leve” de Depressão, porém constante - que não te permite gostar nada. Em geral é confundido com um estado permanente de mau-humor, um traço de personalidade de quem vê defeito em tudo. Portanto socialmente aceito, uma vez que a pessoa é apenas vista como chata.
Lembro de como esse autodiagnóstico me fez mal, por pensar no tempo que havia perdido da minha vida não aproveitando como poderia.
Um psiquiatra me diagnosticou como Depressivo e Neurótico por Antecipação, me receitando antidepressivos. Que me ajudaram por um tempo, mas me deixaram em uma equalização emocional tão neutralizada que nada me derrubava demais… mas nem me empolgava demais. Acabei erroneamente largado por conta própria, o que é um erro - o “desmame” tem que ser feito por orientação médica, da mesma forma que a indicação inicial. Isso é algo que ainda tem que ser resolvido.
Durante a Pandemia a única prioridade era sobreviver. Física e mentalmente. A variável da produção cultural foi completamente eliminada da minha vida. Durante a quarentena você conseguiu aproveitar pra gravar seu disco, escrever seu livro, quinhentas páginas de roteiro? Poxa, parabéns. Eu consegui negociar com o proprietário do meu apartamento a suspensão temporária da cobrança do aluguel e das multas por atraso, pedir empréstimo em banco, e consegui me manter vivo - mesmo com um desgraçado na Presidência trabalhando efetivamente pra que o contrário acontecesse.
Cheguei a pegar um trabalho de copywriting tão bizarro pra mim que vai render uma edição própria da newsletter numa próxima edição. Na ocasião salvou, mas a deprê era tanta que a vontade de digitar qualquer outra coisa era zero. Eu deveria ter me forçado, quem sabe não amenizaria a situação de “saúde muito mental”.
Em dado momento eu tive que começar a ver um psicólogo pra não surtar de vez. [mesmo contrariando uma outra ideia do Lynch, sobre Terapia inibir a criatividade.] Ele vem tentando me ajudar a ligar alguns pontos e rever alguns conceitos. Muito se fala em procrastinadores serem perfeccionistas, mas eu custo a acreditar nisso.
Autossabotagem e Síndrome do Impostor provavelmente têm mais a ver com um mecanismo interno de autodefesa que nos protege da sensação de fracasso. Se eu não produzo, não preciso me sujeitar nem ao julgamento alheio nem ao meu próprio, às incertezas de uma “vida de artista” que não sabe se vai conseguir dar conta dos boletos.
Pra resolver essa equação de grau infinito um elemento aparece, que é o Emprego Careta. É ele que vai fazer a vida do roteirista / quadrinista ser mais suportável, em todos os sentidos. Nunca me esqueço de como devo ter estragado o dia de um garoto na Santos ComiCon que, acompanhado da mãe, me perguntou em um painel o que era preciso na prática fazer para se viver como roteirista - e eu respondi, “pra começar, ter um trabalho que pague as contas, fazer concurso público pode ser uma boa”.
O “trabalho careta” resolve muito bem as coisas de um lado. Ter as contas pagas tira da frente a Espada de Damocles de precisar fazer dinheiro com qualquer tipo de Arte em um país com tanta desigualdade social, em que ela precisa ser subsidiada de alguma forma. Ainda vou escrever por aqui sobre a realidade de ser quadrinista no Brasil porque vejo que ainda existe muita ilusão a respeito disso.
Porém esse trabalho vai tirar tempo de se produzir arte, o que é mortal em uma realidade que exige do artista ser seu próprio departamento de marketing manter ativos vários perfis em redes sociais para “criar conteúdo” e divulgar seus trabalhos. Porém é algo do qual ainda não podemos fugir.
Juntando todos esses fatores, aqui estou, com zero roteiros de HQ escritos desde sei lá, 2020. Não é à toa que estou acabando de escrever esse texto de um computador na baia de um escritório administrativo, com um armário de metal atrás de mim.
Aí você acaba percebendo que existe uma frustração maior do que não ser cobrado, julgado, de se decepcionar. É não produzir nada. Essas sinapses de prazeres têm que ser reconectadas, porque - e nisso eu acabo concordando com os romancistas boêmios - se não nos expressamos, morremos. Gera uma sensação de incompletitude imensa. E é nesse processo que venho tentar me reinserir.
Uma coisa que me dá essas pequenas doses de satisfação - de forma mais intensa, contínua e natural, é fazer exercícios. Uma outra hora eu talvez fale sobre minha vida de nerd na academia de ginástica, das 3 semanas [haha] em que fiz Crossfit… enfim, atividade física - principalmente a Calistenia - além de dar prazer traz uma sensação de começar e terminar uma tarefa, o que ajuda quando se precisa desenvolver uma disciplina para qualquer atividade.
Aconteceu este ano uma coisa muito legal que foi ser chamado pra criar diálogos adicionais de um curta. Quero falar em mais detalhes disso em uma próxima newsletter. É bom variar de mídias e não ficar só dando soco em ponta de faca numa só. [“Soco em Ponta de Faca” quase foi o nome da Narrativa Oculta.]
Como eu disse na primeira edição dessa newsletter, me reacostumar a escrever foi um dos grandes motivadores de eu começar a fazer isso aqui. Nem que seja como exercício pra esquentar os neurônios e os dedos. Mas principalmente como uma espécie de terapia [ocupacional?].
Tudo isso serve pra gerar uma espécie de energia de satisfação suficiente pra que eu me sinta bem pra escrever de novo. Estimular energia de criação é uma das coisas mais importantes pra mim no momento. Pra poder chegar de fato no estágio de criar novamente. É um dos temas que vou abordar aqui com certa frequência. Vira e mexe eu lembro da sensação boa que me dá acabar um roteiro de HQ, mesmo sem saber se ele vai ser desenhado.
É isso que vou perseguir a partir de agora. A alternativa a isso é um estado de letargia do qual quero me livrar com urgência. Não quero mais ser um Artista Sofrido, nem um Artista Parado.
E esse, crianças, é o fim do momento de autocomiseração da semana. Coisas que eu precisava dizer. Quem sabe você também precisa. Então diga. Sempre vai ter alguém que precisa ouvir.
O ESCONDIDO
Um homem de 30 e poucos anos, trabalhador, sem antecedentes criminais, do nada entra em um banco com uma escopeta e atira em todo mundo. Outro homem, um senhor de meia-idade, com apenas multas de trânsito em seu nome, ataca uma loja de discos, uma de carros e mulheres na rua, simplesmente porque não respeita ninguém, apenas seus desejos mais profundos.
O melhor [e mais cansado] investigador de polícia da cidade não consegue entender esse aparente surto coletivo, nem quando chega um agente do FBI para ajudar na investigação - e o comportamento enigmático desse não ajuda logo de cara a esclarecer as implicações fora do normal que esses casos têm em comum.
O ESCONDIDO, do diretor Jack Sholder [do segundo HORA DO PESADELO] e do roteirista Jim Kouf [que já fez um pouco de tudo e ainda está na ativa], é um filme semiesquecido de 1987 que vi esses dias e me impressionou. Visual e tematicamente datado até a medula, mas até por isso tão atual por conta do ciclo interminável de idas e vindas no campo das ideias e da estética.
Mas datado quanto? É só ver a cena da loja de automóveis pra se ter uma ideia.
A sequência inicial, que emenda o violento assalto a banco a uma perseguição de carros pelas ruas ensolaradas de Los Angeles [capturadas muito bem pelo diretor de fotografia Jacques Haitkin - que contribuiu na definição do visual da época em inúmeros filmes B], é uma porrada não muito distante das cenas mais violentas de MAD MAX, ROBOCOP e MIAMI VICE.
Kyle MacLachlan usou bem sua experiência em DUNA e VELUDO AZUL pra compor o jovem agente do FBI de comportamento estranho, com uma aura fora do lugar, que parece até um estágio para o Agente Cooper que faria dois anos depois em TWIN PEAKS. Michael Nouri, que depois se alternaria entre papeis de outros policiais e médicos, se esforça pra canalizar o melhor Dirty Harry que ele pode - e versão “pai de família”.
Quando entendemos - cedo demais, na minha opinião - o que está por trás do comportamento irracional, primitivo e sem limites dessas pessoas, vemos como a narrativa oculta desse filme é sobre o mal que os “homens de bem” fazem à sociedade. Pronto, usei o título da newsletter em um texto.
Obviamente as mulheres seriam vítimas desses sujeitos; Claudia Christian [de BABYLON 5] faz uma stripper em perigo - uma fixação / trope da época - que também acaba sendo tomada pela força que deturpa a mente dos cidadãos de respeito. Até de seus cachorros e políticos de estimação. Uma pena que ela tem pouco tempo de tela; era uma personagem que tinha potencial pra deixar a trama ainda mais interessante.
Um aspecto pouco explorado, mas que serve como um tempero interessante, é o papel da música no filme. As pessoas alteradas por algum motivo - no máximo ligado à inconsequência - gostam de ouvir música em volume bem alto, independente de quem está em volta.
Assim a trilha ficou recheada de sons que vivem naquele encontro entre o Pop do meio dos anos 80 e o Hard Rock, de batidas secas, fortes e com eco. Tome então Concrete Blonde, Shok Paris, The Lords of the New Church e outros artistas da gravadora I.R.S., que aparece em um pôster na cena da loja de discos.
A dupla Sholder/Kouf conseguiu, ainda que de forma não muito aprofundada, usar como subtexto pra construir um filme de Ação e Ficção Científica uma leve sátira à futilidade do consumismo da época, às convenções opressoras da sociedade e dos agentes do caos que as quebram em rompantes violentos de um transe alucinado. Esse monstro nojento que muitos temos dentro de nós.
Um paralelo que é possível traçar até os dias de hoje, com seres abissais desprovidos de humanidade, com atitudes escrotas em busca de microdoses de dopamina. Quase como um primo de SCANNERS e ELES VIVEM, com uma direção relativamente próxima a de um Michael Mann. E eu me diverti assistindo em uma tarde perdida de Sábado.
Trailer:
FAKTURA
Trio paulistano de darkwave eletrônico / pós-punk que fez em DANOS um dos EPs que mais gosto de ouvir nos últimos anos. Transita na confluência de Carpenter & Howarth, Harry e Boy Harsher. Quase uma pequena trilha dessa distopia gostosa que temos vivido nessa megalópole tão decadente e ainda tão interessante.
No dia 18/11 Faktura se apresenta no Festival Cidade no Centro, junto de um monte de artistas brasileiros e estrangeiros bem interessantes.
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SÓ UMA DOSE
"A virtude é simplesmente a felicidade e a felicidade é um subproduto da função. Você é feliz quando está funcionando".
- William S. Burroughs
APENAS PARA SEUS OLHOS
A primeira edição para assinantes pagos será enviada essa semana. Se você que está lendo quer receber conteúdo exclusivo, uma dica é garantir seu acesso agora com desconto no plano anual.
Nos vemos na próxima edição. Até lá, se cuide e respire devagar.
- Hector Lima
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