Um crime acontecerá em Maceió
Um dos meus primeiros contatos com o alagoano Pablo Casado foi há 18 anos - ou um pouco mais - quando trocávamos ideia pela internet em alguns fóruns de discussão - principalmente o WEF. Ele me entrevistou pro site Universo HQ e viramos amigos, colegas de projetos, de coletivo, de viagens pra eventos de HQ. Dividimos páginas, estandes, mesas em áreas de autores e painéis.
Achei bem apropriado a primeira entrevista da newsletter ser com ele - fazendo essa volta circular. Também porque eu queria discutir com ele mais sobre SOUL INK, sua graphic novel com Felipe Cunha e Talles Rodrigues que está em campanha no Catarse.
Eu quis também falar com ele sobre escrita. Pra além de ser meu amigo, considero o Pablo um dos melhores - se não o melhor - roteirista brasileiro de HQs em atividade hoje. Leia MAYARA E ANNABELLE pra entender o que estou dizendo.
Hector Lima: Pablo, tudo bem? Me fala como veio a ideia pra SOUL INK e o que você acha - em termos de fatos reais, conexões de ideias (como o elemento do uso das tatuagens) e outras obras - que influenciaram a graphic novel.
Pablo Casado: Oi, Hector. Nossa, é muito estranho responder essa pergunta hoje. Porque SOUL INK começou a ser desenvolvida em 2013. E a ideia inicial veio — sem brincadeira — um dia qualquer quando eu estava assistindo a MIAMI INK. Ou foi o NY INK. Um desses realities de estúdio de tatuagem que hoje nem sei se existem mais. Na época eu era meio pilhado com essa coisa de fazer pitch com frequência, então ficava ligado em tudo, qualquer coisa era inspiração para uma história. A maioria, claro, não ia pra frente. SOUL INK sobreviveu porque, além do estalo de ter esse protagonista dono de um estúdio de tatuagem, algo que no auge dos meus 30 anos parecia o máximo, alguns outros assuntos acabaram se encaixando: eu estava pesquisando sobre o Jaraguá, bairro histórico através do qual Maceió se desenvolveu, e a expansão imobiliária no litoral norte também me chamava atenção. Em resumo, era uma história de ficção científica e crime sobre um personagem que ia lutar contra a gentrificação do bairro onde ele tinha o estúdio. O tipo de conceito que alguém que se 'formou' com o guia de roteiro de histórias de quadrinhos do cancelado Warren Ellis criaria.
HL: Conta mais um pouco sobre quem são os personagens, sem entregar demais as eventuais surpresas.
PC: Saulo é o protagonista, tatuador proprietário da Soul Ink. No decorrer da história, descobrimos que ele tem um passado no mundo do crime — e esse passado retorna quando Samuel, seu irmão caçula, contrai uma dívida com Catarina, para quem Saulo trabalhou. É ela quem coloca seu principal capanga para cobrar a dívida de Samuel.
HL: Fiquei bem feliz quando soube que você e o Felipe Cunha estavam retomando o projeto da SOUL INK. Como veio essa decisão e o que mudou na história (além da evolução na arte do Felipe) desde aquela época da ideia inicial pelo nosso coletivo Fictícia até esse momento?
PC: Felipe e eu conversamos na CCXP de 2022 sobre trabalharmos juntos de novo. Desde a SABOR BRASILIS, que fizemos com você e a Gegê Schall, seguimos caminhos distintos. Eu fiquei de apresentar algumas ideias em janeiro, mas o Felipe perguntou o que eu achava de retomar a SOUL INK. Ele tinha olhado o pitch original e acreditou que havia algo ali. Eu não queria, sinceramente, haha. Na minha cabeça, era algo datado, no sentido de que não representava mais quem eu era enquanto roteirista. Mas aí relendo, vi que tinha alguma coisa a ser resgatada ali. A principal mudança foi no formato, porque SOUL INK era uma série. Então, além de atualizar o conceito, boa parte do meu trabalho foi extrair o essencial para contar algo satisfatório como graphic novel. E foi a história de vingança, que também está na primeira versão.
HL: A história se passa em uma versão futurista de Maceió, sua cidade. MAYARA E ANNABELLE sempre foi elogiada - entre outros motivos - por trazer cenários reais de Fortaleza em contextos fantásticos. Como foi pensar elementos reais do lugar onde você nasceu em um contexto de Ficção Científica? Ainda mais com situações reais até demais, como parte de Maceió literalmente afundando?
PC: Eu acho que SOUL INK é mais concisa nesse sentido, pela mudança do formato série para graphic novel, mas a presença de Maceió é clara, social e fisicamente. E Maceió acaba representando Alagoas de certa forma, pensando nos aspectos sociais e históricos. São temas que me interessam e que já abordei em outras histórias, como em A CARTILHA DA BALA, que saiu na INKSHOT, e também no curta-metragem DO AMORE OUTROS CRIMES. Mas a questão do afundamento dos bairros ainda é algo que não consigo colocar numa história. Eu quero. Mas o trauma de ser uma das milhares de pessoas que foi obrigada a ser do bairro onde viveu boa parte da vida ainda é maior.
HL: Ainda que a ambientação seja de FC, SOUL INK me parece ser um suspense com elementos de Crime (neo-noir, por assim dizer), dada a premissa. Fala um pouco de como foi pensar nos elementos desse gênero de história - que eu sei você curte bastante - em uma ambientação tão próxima pra você.
PC: Eu cresci assistindo Lei & Ordem com meu pai. Minha série favorita é The Shield, sobre um grupo de policiais corruptos — e eu moro no estado onde um dos grupos de criminosos mais temidos dos anos 1990 era Gangue Fardada, formada por PMs. Não me considero um autor de histórias de crime, mas com certeza é o meu gênero favorito. Quando eu reescrevi a história, preservei a ficção científica porque eu queria brincar com alguns elementos, principalmente a violência. São gêneros que conversam, porque é comum termos personagens que querem ir ou precisam ir além de alguma coisa. É um conflito que me interessa.
HL: Eu gosto muito de como você escreve diálogos com ar natural sem excesso de ruído, e que fazendo o enredo avançar pelo embate verbal dos personagens. Desde o nosso processo de criação em SABOR BRASILIS isso me pareceu claro. E ao longo dos últimos anos foi se refinando com as discussões entre Mayara e Annabelle nos volumes das aventuras delas. Fala um pouco de como você pensa e constroi diálogos, o que te inspira pra isso, e como esse processo rolou em SOUL INK.
PC: Essa coisa do diálogo natural que todos reconhecem e elogiam me pega porque, o que eu gosto mesmo é a outra parte, como você notou, que é o embate, a discussão. A naturalidade vem da necessidade da história e, se eu acerto, nem sei se é tão consciente, porque estou mais focado em fazer os personagens brigarem, haha. Isso vem muito da minha experiência pessoal e profissional, de estar em ambientes onde se discutia de forma intensa por tudo. E eu nunca fui de aguentar as coisas calado, o que, claro, às vezes dá problema. Também gosto de umas metalinguagens mais rasteiras, como uma maneira de registrar o meu estado de espírito enquanto escrevo ou para comentar coisas óbvias (pra mim) sobre a história. Vou usar um exemplo de MAYARA & ANNABELLE para não dar spoiler de SOUL INK: na primeira página do Volume 3 (para quem tem a edição definitiva, a Parte 3 do edição 1), um vilão se espanta e fala que está fascinado que 'essa história' chegou tão longe. E olha na direção dos leitores no quadro seguinte e pergunta se 'Não concorda comigo?'. Quando Talles e eu lançamos o Volume 1 bancando do bolso, a gente não sabia se íamos longe com a série. E lá estávamos nós e nossas duas funcionárias públicas combatendo demônios no Ceará no Volume 3. Em SOUL INK tem um comentário sobre a história na primeira página, mas não vou entrar em detalhes.
HL: Você ainda curte escrever os roteiros de HQ em formato full script? [Nota: formato de roteiro de Histórias em Quadrinhos em que se descreve o que acontece em cada página e em cada quadrinho.] Esses dias vi uma foto do seu escritório e na estação de trabalho tinha uma segunda tela, em formato retrato (em pé). Você usa pra deixar pesquisas abertas? Fala um pouco sobre o lado mais mão na massa do processo, do papel do Felipe na construção / interpretação da história.
PC: Sim, ainda continuo usando o full script. Já tive vontade de fazer algo na linha do Marvel Way [Nota: formato popularizado por Stan Lee nos anos 60 em que o roteirista faz uma descrição geral do que acontece em cada página, cabendo ao desenhista decidir como diagramar cada quadrinho] ou mesmo dos rascunhos, como na TURMA DA MÔNICA e nos mangás, mas a oportunidade não apareceu. A segunda tela eu uso mais para trabalhar com preparação de texto e também quando vou balonizar. Apesar de trabalhar no full script, o Felipe (e o Talles e qualquer outro desenhista com quem eu trabalhe) teve liberdade pra mexer no que fosse necessário para melhorar a história. Inclusive uma das minhas cenas favoritas não estava no roteiro e o Felipe quem sugeriu ainda nos rascunhos. É assim, não tem muito mistério. Antes de começar o roteiro, o que eu faço é escrever um argumento com toda a história, só pra mim, e depois uso posts-its pra colocar todas as cenas necessárias. No roteiro muita coisa acaba mudando e situações novas aparecem.
HL: As cores de SOUL INK são do Talles Rodrigues, seu parceiro de MAYARA E ANNABELLE esses anos todos - que me parecem dar o ar ao mesmo tempo Pop, futurista e noir que a história pede. Você discutiu com ele a direção de arte das cores, e o que o logo precisava transmitir com a Gegê Schall?
PC: As cores eu deixei que o Felipe resolvesse com o Talles e só dei minha opinião depois. Em relação a logo, acredito que foi a mesma coisa. Com o roteiro e o pitch, eles já tinham todo o conceito em mãos para desenvolver de forma que fosse mais adequado pra história.
HL: Falando em processo e telas, como você consegue parar pra escrever hoje em dia? Parece absurdo pensar nisso, mas a Economia da Atenção das redes sociais capturam tanto nosso interesse com as microdoses de dopamina - seja por esperar engajamento com posts ou ficar dando scroll infinito nos feeds até perder o sentido - que simplesmente parece um trabalho hercúleo em 2023 não ficar olhando tanta coisa e conseguir focar pra produzir qualquer expressão artística.
PC: Acho que o que me ajuda hoje é uma rotina que não está orientada por estar no computador. O que parece contraditório já que eu preciso estar diante de uma tela pra trabalhar. Mas eu organizo o meu dia pelo horário da minha atividade física. De preferência, um horário fixo. Então se hoje eu treino no período da tarde, sei que horas preciso acordar pra comer, arrumar a casa e sentar na frente do computador até dar a hora de comer e ir treinar. Depois do treino trabalho mais um pouco. Ter começado uma dieta há quase um ano também ajudou, porque eu preciso comer em horários específicos porque a fome vem pontualmente, haha. Não é perfeito, mas é melhor do que na época da pandemia.
HL: A propósito, o que tem chamado sua atenção que você gostaria de recomendar em termos de roteiro legal - ou mesmo sem destaque ao roteiro, mas obras que tenham mexido contigo, ou te entretido em qualquer mídia?
PC: Difícil lembrar em períodos como este, em que você está produzindo algo e acaba só lendo ou assistindo material de pesquisa. Eu gostei muito de CANGAÇO NOVO. Fala de temas do nordeste que me interessam e com uma qualidade de atuação, roteiro e direção absurdas. A parte 2 de CHAINSAW MAN é a melhor continuação que ninguém pediu, pois vai num caminho completamente oposto e novo em relação à parte 1. Tatsuki Fujimoto é o meu quadrinista favorito dos últimos anos. E adorei OPPENHEIMER e ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES. Ansioso pelo FERRARI do Michael Mann.
HL: Pensando nessas questões e lembrando do tema de Tatuagem no enredo da HQ, lembrei da sua tatuagem com a frase célebre do Jack Kirby, "Comics will break your heart" ("Quadrinhos vão partir seu coração"). Você sente que perseguir os sonhos como autor nesse meio ainda vale a pena, mesmo depois de tanta dificuldade e eventuais frustrações?
PC: Quando eu olho pra esses 20 anos escrevendo quadrinhos, acredito que o sonho virou realidade. E a realidade é que, aqui no Brasil, a maior parte dos artistas não vive disso. Mesmo nos Estados Unidos a gente sabe que muitos dos que 'vivem' de quadrinhos lá ganham o suficiente pra pagar as contas e é isso, não tem plano de saúde e a estabilidade é só um conceito. Então sinto que já passei dessa fase de sonho considerando o nosso contexto: já publiquei graphic novel, sou coautor de uma das principais séries do meio, fui indicado algumas vezes e ganhei um HQMIX... não falo com arrogância ou amargura, mas os quadrinhos não serem minha fonte de renda é uma questão do nosso mercado. Enquanto eu puder fazer quadrinhos e isso não me impedir de pagar as contas, vou continuar.
HL: Depois de SOUL INK você tem outras HQs em produção no momento? Mais M&A ou mais adaptações como você fez de Mario de Andrade em CONTOS NOVOS, que o Daniel Esteves editou? Ou mesmo outras mídias? Tem sido legal ver suas resenhas em vídeo.
PC: Mais MAYARA E ANNABELLE, com certeza. Infelizmente não rolou este ano, mas em 2024 é certeza. Tem uma adaptação a caminho também, mas essa não posso falar ainda sobre. Os vídeos eu quero continuar, provavelmente ir pro YouTube. Sempre fui fascinado por vídeo-ensaio. Quero voltar pro audiovisual, só não sei como, haha.
HL: Do ponto de vista de uma pessoa leitora, o que ela pode esperar de SOUL INK? Pra quem você acredita que ela seja indicada e por que apoiar no Catarse?
PC: SOUL INK é ficção científica, crime e vingança. É também sobre superar os erros do passado, consigo e com aqueles que amamos. É seguir mirando o futuro, porque esta é a única opção para aqueles que querem continuar vivendo. Apoie porque os gêneros te interessam, dê uma chance a um quadrinho nacional se você não conhece o nosso trabalho, vamos juntos.
Obrigado por ter lido até aqui. Nos vemos em breve.
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